Quando o maestro Abigail Moura entrava no palco era como se arrastasse consigo todas as forças cósmicas. Nos bastidores, tal qual um sacerdote, fazia uma oferenda aos deuses em busca de captar boas vibrações, dava comida aos atabaques, sacralizava os instrumentos, tomava um banho de ervas purificadoras e submetia as roupas dos músicos a um ritual religioso. De 1942 a 1970, Moura esteve à frente da ousada e vanguardista Orquestra Afro-Brasileira, projeto musical criado por ele para valorizar a memória e a cultura negra.
Em sua música interpretada como exótica por alguns, difícil por outros e nada comercial por todos, entronizou a percussão como alma da orquestra, fundiu os ritmos ancestrais africanos ao jazz e à música erudita. Colocou instrumentos “primitivos” ao lado de “civilizados” e inspirou-se nas cantigas que ouviu da avó na infância, nas lembranças da família e nos cantos de umbanda para compor as canções que, de acordo com sua definição, boiavam no mistério e se projetavam pelo inexplicável.
Até 25 de janeiro, o Museu Afro Brasil, em São Paulo, exibe Breves Notícias: Abigail Moura e Orquestra Afro-Brasileira, mostra que reúne manuscritos de textos e poemas, partituras, cartazes de audições e fotografias do maestro e dos músicos. A exposição é pequena, especialmente a se considerar a importância do homenageado. O acanhamento é, contudo, justificável, pois pouco se sabe acerca do músico autodidata nascido em Minas Gerais e radicado no Rio de Janeiro, cujo talento vanguardista arrebanhou devotos como Eleazar de Carvalho, Camargo Guarnieri e Câmara Cascudo.
Em 30 anos de atuação, a Afro-Brasil fez somente cerca de cem apresentações e lançou dois discos, Obaluayê (1957) e Orquestra Afro-Brasileira (1968). Raridades ambos, o primeiro LP ganhou edição em CD em 2003, encartada em brochura baseada na pesquisa do antropólogo especializado em música Grégoire de Villanova a convite de Emanoel Araujo, à época curador da exposição Negras Memórias, Memórias de Negros e hoje à frente do Museu Afro Brasil.
“Moura tinha enorme curiosidade sobre a África e a questão afro-brasileira. Era um músico consciente de suas raízes, engajado na conquista de uma memória sagrada e profana”, diz Araujo. Para o franco-brasileiro Villanova, habituado a viagens por Caribe, África e América Latina em busca de raridades em vinil, a importância maior de Moura foi criar um som único, um gênero que se aproxima da música clássica afro-brasileira. “Ele resgata instrumentos muito antigos e os usa quando não fazem mais parte da organologia afro-brasileira. Poucos artistas fizeram isso nos últimos dois séculos.”
A fusão estabelecida entre o que considera primitivo e civilizado coloca lado a lado instrumentos da tradição ritual jeje-nagô, como o trio sagrado de tambores denominados rum, de som grave, rumpi, de registro médio, e lê, de som agudo (o pai, a mãe e o filho), o agogô, condutor do ritmo, conguê e adjá, sinetas metálicas, berimbau e urucungo, da família dos arcos sonoros africanos. A completar a maravilhosa “cozinha” percussiva, o ganzá e a angona-puíta, avó da cuíca brasileira. Com a finalidade de fazer um contraponto ocidental, a Orquestra Afro-Brasil trazia dois saxes-altos, dois saxes-tenores, três clarinetas, três trompetes e dois trombones.
Um tom místico e ancestral emanava especialmente da voz profunda da solista Maria do Carmo. De vestido longo, beleza negra evocativa de Billie Holiday, ou paramentada como baiana, envolta em bata branca, colares e pulseiras de contas a conferir aura de rainha, a contralto teria sido a inspiração para Moura criar a orquestra. Num episódio que reforça a mística em torno da Afro-Brasil, Carmo interpretava de modo sublime um canto religioso quando enlouqueceu em cena. Nunca mais voltou aos palcos.
Pobre e líder de uma orquestra em que a maioria dos músicos era formada por amadores que tocavam por amor à arte, Moura cantou uma África onde nunca colocou os pés, cuja força vinha da ancestralidade. Na análise do ideólogo Abdias do Nascimento, o maestro “jamais se dobrou aos apelos bastardos da comercialização” e não se deixou “corromper pelos cantos de sereia ideológicos”. Com um projeto tão ousado quanto impopular, quem seria o público da Afro-Brasil? “Moura estava inserido num contexto mais intelectualizado de burguesia negra e a pessoas muito ligadas à música que entendiam o que ele fazia”, diz Villanova. Entre a elite que ia às apresentações estavam o poeta e teatrólogo Paschoal Carlos Magno, o maestro José Siqueira e musicólogos como o dinamarquês Hans Jorgen Pedersen.
Único remanescente da orquestra com carreira profissional ativa, Carlos Negreiros procura perpetuar o ideário musical de Moura. “Ele é um mestre em percussão e foi cantor solista da Afro-Brasil”, conta Villanova. “Percebo na forma estética de Negreiros o som do maestro. Ele tem formação clássica e talvez a ligação esteja aí, no desejo de fazer música erudita afro-brasileira. Ambos usaram raízes totalmente diferentes, a priori conflitantes, para criar algo ímpar.”
Depois da morte de Moura, em 1970, Negreiros tentou refazer a orquestra. Não deu certo. Numa consulta a um terreiro de umbanda foi aconselhado a jogar no mar tudo o que se referisse à big band e acabar de vez com a Afro-Brasil.
Trinta e seis anos após o desaparecimento de Moura, surge na Bahia a Orkestra Rumpilezz, que bebe da mesma fonte. A big band criada pelo maestro Letieres Leite em 2006 parte do universo rítmico das ruas de Salvador, do sacro ao profano, dos toques de umbanda e candomblé. O nome do grupo é uma aglutinação dos três tambores primordiais, ru, rumpi e lê, acrescido dos dois zês da palavra jazz.
“Conheci o trabalho do Moura por meio do Ed Motta. Fiquei abismado com a beleza da obra. O maestro foi inovador, especialmente para a época, tanto que sofreu problemas sérios de preconceito, pois era uma orquestra de negros com toques de percussão. Bebemos da mesma fonte, a diferença é que buscamos conexões com a música contemporânea, dos arranjos às formações rítmicas”, diz Leite. Com 20 integrantes, 14 nos sopros, o maestro no sax, e 19 na percussão, a Rumpilezz faz a fusão de música negra ancestral e jazz.
Se a Rumpilezz não se entrega à ritualização como a Afro-Brasil, mergulha com tudo no universo sonoro dos terreiros, coloca pimenta no caldeirão e serve um prato borbulhante. “Todos os percussionistas são ligados ao terreiro. Eu sou filho de santo, somos todos macumbeiros.”
Para Leite, que quando jovem aluno da Universidade Federal da Bahia matava aulas de artes plásticas para tocar flauta e corrigiu o prumo ao entrar para o Conservatório Franz Schubert, em Viena, a reação do público surpreende. “Achei que nosso som se destinasse a plateias restritas. Mas a receptividade é muito boa, vamos do Teatro Municipal do Rio a uma praça .”
Arranjador de artistas como Lenine e Gilberto Gil, o maestro traz a Rumpilezz a São Paulo dias 19, 20 e 21 de dezembro (Sesc Belenzinho). Em julho de 2015, junta-se ao saxofonista norte-americano Joshua Redman em turnê pela Europa. “Tudo será gravado, preparamos o segundo álbum autoral.” O primeiro foi lançado em 2009.
Segundo Motta, entusiasta do trabalho do maestro baiano, Leite é sucessor legítimo de Moura. “Ele diz que herdei o bastão. Acho certo exagero, mas na qualidade de orquestra afro-brasileira talvez sejamos a continuidade.” Assim como o quase esquecido antecessor, que Villanova equipara ao norte-americano Sun Ra e ao nigeriano Fela Kuti (“eles inventaram um estilo musical”), Leite vai além de perpetuar a tradição afro-brasileira. Nas palavras do pesquisador, o intuito de Moura era “a vontade de criar uma grande música e participar da beleza universal”. Objetivo maior certamente compartilhado por Leite.
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