quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Raul de Souza

"A música é o real alimento da alma".

A aversão do Raul a biografias suas que começam com o clichê "nasceu-em-Campo-Grande-cresceu-em-Bangu" lembra a bronca do arquirrebelde da nossa época, Holden Caulfield, em O Apanhador no campo de centeio: "Se querem realmente saber a respeito, a primeira coisa que provavelmente vão querer saber é onde nasci, e como foi a desgraçada da minha infância, o que meus pais faziam antes de me terem, e toda aquela baboseira tipo David Copperfield, mas não estou afim disso, se querem saber a verdade." Raul é da geração dos Caufields, os rebeldes-sem-causa que adolesceram no pós-guerra e logo viram — ele com seus olhos de sábio chinês — que o mundo estava cada vez mais errado. E que providência tomou? Não saiu por aí fazendo discursos nem política, apenas botou a boca no trombone. O trombone — que surgiu na Europa lá pelos 1400s com o nome de sacabucha — é um instrumento rouco e grave, como a voz do Raul. Se o trombone não existisse, Raul o teria inventado. Aliás, inventou um trombone, que leva o seu nome: o Souzabone, com quatro válvulas, um aperfeiçoamento do trombone de três válvulas que tocou na primeira década de carreira, antes de adotar o trombone de vara. Sempre com uma ideia na cabeça: "A música é o real alimento da alma."

O Raulzinho dos primeiros anos foi um Holden Caufield. Para o Raul de Souza de hoje vou propor outro personagem: o Benjamin Button, criado por Scott Fitzgerald em 1921, e agora encarnado na tela por Brad Pitt. Este insólito Button nasce já com 75 anos — a idade atual do Raul — e vai ficando mais moço a cada ano, refazendo sua vida às avessas. Para evitar um perfil linear — a música do Raul é tudo menos linear — vamos caminhar então para o passado, até quando o nosso herói nasce, finalmente, em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, filho de um pastor evangélico, crescendo em Bangu, onde aprende bumbo, pandeiro, caixa e prato e, aos 16 anos, passa a tocar tuba na banda da fábrica de tecidos famosa. Surreal não é? Mas existe coisa mais surreal do que o Raulzinho que conheci há 50 anos em Curitiba, envergando a farda azul da Aeronáutica? Sempre com o trombone debaixo do braço, à procura de almas irmãs na noite fria, juntando-se à turma da Gazeta do Povo, ao contista Dalton Trevisan e ao futuro cineasta Sylvio Back, para quem Raul (com o pianista Guilherme Vergueiro, só trombone e piano) faria a trilha do filme Lost Zweig, em 2002. Querem coisa mais surreal do que o Raul singrando de pedalinho um lago do Passeio Público, trombone em punho, fazendo serenata para um búfalo aquático?

Tive a felicidade de presenciar o momento exato do rejuvenescimento de Raul em dezembro de 2008, na turnê Circular BR, em que tocou com o trio do gaitista Gabriel Grossi. Assisti à metade dos seis shows: o primeiro no Rio, o segundo em Curitiba (onde eu lançava o livro Improvisandosoluções, que dedica um capítulo a Raul), e o último em Niterói. Ele talvez tenha começado a rejuvenescer uma semana antes, no Sarau da Pedra, na Urca, onde lançou seu CD Bossa eterna com o João Donato. Viajando um pouco no tempo, também poderia ter sido na turnê de lançamento do CD Jazzmim, com os musicos Jeff Sabagg ( teclados) , Glauco Solter ( baixo), Endrigo Bettega( bateria) e Mario Conde ( guitarra) . Quatro jovens de Curitiba que Raul conheceu no Chivas Jazz Festival de 2004 e adotou como filhos, fazendo questão que o acompanhassem até num festival na Ilha da Reunião, nas lonjuras do Oceano Índico. (Muito forte essa ligação de Raul com Curitiba, que o marcou nos seis anos (1958-63) que lá passou, casou e fez filhos e amigos.

Vamos zonear de vez a cronologia. Verão de 1964: morando em Londres, de férias no Rio, revejo Raul no Beco da Garrafas, com o sexteto de Sérgio Mendes, que o levaria pela primeira vez ao exterior. Tomou gosto pelas viagens ao exterior e, depois de gravar seu primeiro LP como solista, À vontade mesmo, voltou à Europa, onde tocou no Blue Note de Paris com o famoso baterista do bebop, Kenny Clarke. Em 1967, Raul está tão cotado que ingressa no RC-7, a banda que acompanha Roberto Carlos, e chega a aparecer no filme do "Rei", Em ritmo de aventura. Funda o grupo instrumental Impacto 8 e grava mais um disco. Parte para o México com o SamBrasil. Em 1973, faz uma turnê pelos Estados Unidos com Airto Moreira e Flora Purim. Nesse ano, Airto produz Colors, o primeiro álbum americano de Raul, pelo selo de jazz Milestone, arranjado pelo mestre trombonista J.J. Johnson, com as participações do saxofonista Cannonball Adderley e do baterista Jack DeJohnette. A partir daí é a consagração e o reconhecimento da sua arte, com o lançamento de três albuns que fazem o seu nome na América (Sweet Lucy, 1977; Don't Ask MyNeighbours, 1978; Till Tomorrow Comes, 1978), na intimidade com gigantes do jazz como Sonny Rollins, George Duke, Sarah Vaughan, Cal Tjader, Freddie Hubbard, Hubert Laws e um de seus trombonistas favoritos da juventude, Frank Rosolino. (Raul se apresentaria em dueto com ele no Festival de Jazz de São Paulo de 1978, pouco antes da trágica morte de Rosolino.)

A consagração maior nos anos 1970 é a inserção do seu nome em The Encyclopedia of Jazzin the Seventies, dos críticos Leonard Feather e Ira Gitler, com direito a foto ostentando uma cabeleira afro, e ao verbete de 21 linhas, DE SOUZA, JOÃO JOSÉ PEREIRA (RAUL), com a data de nascimento correta, 23/8/1934. João José? O nome artístico foi dado por Ary Barroso, em cujos programas de calouros ele brilhava: "João José não é nome de trombonista. Já temos o Raulzão (Raul de Barros). Você vai ser o Raulzinho."

O coração sempre falou mais alto na vida do Raul. Em 1980, veio ao Brasil com uma banda de all stars para o Festival Rio-Monterey no Maracanãzinho e, uma vez mais, sentiu o calor do reconhecimento de seus conterrâneos. Divorciado da mulher americana em 1986, voltou ao Brasil. Um álbum mediano de 1993, The OtherSide of the Moon (em que toca saxofones alto e tenor e dá até uma de crooner cantando Abraço vazio) é plenamente compensado pelo jazzístico Rio, de 1998, em que reedita, com o trombonista Conrad Herwig, os fabulosos duetos do duo J.J.&K (J.J. Johnson e Kai Winding) nos anos 1950.

O fim do século e do milênio propiciam outra mudança de coração. O encontro com Yolaine leva Raul para Paris, onde forma uma banda familiar, fazendo mais ou menos o que Miles Davis tentou em sua fase final: um jazz mais descontraído numa atmosfera pós-fusão, ou neo-fusão. Nesta viagem em ziguezague pelo tempo — como nos filmes da série De volta para o futuro — não podemos deixar de visitar o fascinante Elixir, de 2004, em que Raul faz na última faixa, Terra, uma declaração de amor ao Brasil, "terra de samba e pandeiro", antes de embarcar num dionisíaco solo de trombone de seis minutos que é uma autêntica síntese de sua arte — bela, apaixonada e complexa. Impossível rotular sua música. Samba? Choro? Jazz? Talvez um samba mitológico, dentro da sua cabeça (como aquele dentro da cabeça de João Gilberto), uma espécie de jazzfieira, ele que gravou pela primeira vez com Altamiro Carrilho e a Turma da Gafieira. Ou, atando as duas pontas da sua carreira fonográfica, e incorporando o verdadeiro achado que é o título de seu último CD — e da sua composição que abre o disco — a Bossa Eterna de Raul de Souza.

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